Um novo olhar para os hospitais

Sob o olhar curioso – e desconfiado – da equipe de saúde, a Arte Despertar entrava pela primeira vez em um hospital, no dia 21 de agosto de 1997, com a missão de usar a arte para transformar a experiência dos pacientes na instituição e todo ambiente a seu redor.

O desafio era grandioso. Afinal, há 20 anos, o país ainda engatinhava na elaboração da Política Nacional de Humanização e ações como essa eram recebidas com grande receio. A movimentação provocada pelos arte-educadores, munidos de lápis, papéis, tintas e instrumentos musicais, parecia não condizer com o clima de tranquilidade exigido para favorecer a recuperação da saúde.

Mas ao se constatar que, além de contribuir para a harmonia do hospital, as intervenções artísticas (atendimentos) ajudavam a melhorar o estado emocional das crianças na Pediatria do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, a desconfiança aos poucos foi se esvaindo, a ponto de a Arte Despertar passar a atuar em todas as alas da instituição.

“Os profissionais da saúde foram começando devagarzinho a cantar junto, a escutar as histórias narradas e, de repente, já tinha médico tocando pandeiro junto conosco. Os pais pediam a nossa presença, pois percebiam que os efeitos das intervenções permaneciam mesmo depois da nossa saída. O Incor foi muito corajoso ao nos apoiar diante do cenário da época e, assim, abriu espaço para começarmos a levar o projeto para outras unidades do complexo das Clínicas”, afirma Regina Vidigal Guarita, diretora-presidente da Arte Despertar.

Desde então, mais de 320 mil pacientes, acompanhantes e profissionais da saúde foram impactados pelos atendimentos realizados nos hospitais. Com base na experiência acumulada nas comunidades e nas instituições de saúde, a Arte Despertar evoluiu e desenvolveu uma metodologia própria que usa a contação de histórias, as artes visuais e a música para resgatar a autoestima dos pacientes, estreitar o seu vínculo com os profissionais da saúde e humanizar todo o ambiente hospitalar.

“Enquanto os médicos e profissionais da enfermagem estão ali para tratar a doença, nossa missão é resgatar o que há de saudável nos pacientes, por meio de repertórios musicais e de histórias que se conectam com a sua trajetória de vida”, explica a arte-educadora Sandra Lessa.

Reconhecimento

Em reconhecimento à seriedade do trabalho realizado nos hospitais, por dois anos consecutivos, 2009 e 2010, a Arte Despertar ganhou o Prêmio Cultura e Saúde dos Ministérios da Cultura e da Saúde.

Atualmente, sete hospitais públicos e filantrópicos da capital paulista (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer - GRAACC, Hospital Infantil Darcy Vargas, Hospital Municipal Tide Setúbal, Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Instituto do Câncer do Estado de São Paulo - ICESP, Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - Incor e Santa Casa de Misericórdia de São Paulo) abrem as portas para as ações realizadas pelos arte-educadores.

“Nosso objetivo é seguir crescendo para impactar cada vez mais pessoas nos hospitais, pois sabemos da necessidade da sociedade por propostas como essa”, conclui Rosana Junqueira Morales, superintendente da Arte Despertar.

Cuidando de quem cuida

Como atender os pacientes em sua plenitude, sem antes olhar para os profissionais da saúde responsáveis por cuidar dessas pessoas no dia a dia? E mais: é possível ensinar alguém a ter uma atuação mais humanizada? Qual a possibilidade de se criar um treinamento capaz de mostrar para cada um desses profissionais a sua real importância dentro do hospital e inspirá-los a desempenhar o seu melhor, em benefício dos pacientes, acompanhantes e dos próprios colegas de profissão?

Todas essas questões já permeavam as discussões dentro da Arte Despertar quando, em 2007, uma enfermeira da Santa Casa de São Paulo solicitou à Associação que realizasse uma atividade voltada para a sua equipe de enfermagem.

Com as dificuldades enfrentadas no duro cotidiano comum às instituições de saúde, esses profissionais precisavam regatar a autoestima, melhorar o relacionamento entre si e, o mais importante, refletir sobre as razões que os levaram a escolher cuidar de outras pessoas e como dedicar a elas um olhar mais humanizado.

Nascia ali o embrião do Treinamento para o Desenvolvimento Humano (TDH), com vivências customizadas conforme a necessidade de cada hospital em trabalhar competências socioemocionais, como empatia, comunicação, relacionamento interpessoal, liderança, entre outros.

“São profissionais que, normalmente, trabalham em duas ou até três instituições, sofrem pressão e cobranças diárias de seus superiores e dos próprios pacientes e convivem com um quadro cada vez mais enxuto de funcionários. Eles precisam se sentir valorizados e motivados para que possam prestar um bom atendimento”, afirma Regina Vidigal Guarita, diretora-presidente da Arte Despertar.

Desde aquela primeira experiência na Santa Casa, o TDH foi evoluindo até consolidar a sua metodologia composta por dinâmicas com artes visuais, músicas e contação de histórias, que já impactaram aproximadamente 6,5 mil profissionais em 30 instituições diferentes.

“O resultado do processo de humanização trabalhado pela Arte Despertar é duplo: o indivíduo se percebe e melhora sob o ponto de vista emocional, holístico e sistêmico. Estando melhor, é capaz de perceber o colega e o paciente. Ou seja, minha saúde reflete no meu trabalho”, explica Vera Bonato, coordenadora da Qualidade do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Incor).

Tal percepção é corroborada pelos profissionais da saúde que participam dos treinamentos. Mais de 79% deles afirmam que as atividades propostas pela Arte Despertar contribuem para a melhoria do relacionamento com os pacientes, acompanhantes e os colegas de profissão. “Sempre saio dessas atividades refletindo sobre como posso melhorar meu desempenho e pensando de qual maneira, mesmo em meio às cobranças diárias, posso olhar o próximo e me colocar no lugar dele”, afirma Camila Teixeira, que atua há oito anos na equipe SOS do Pronto Atendimento do Instituto Central do Hospital das Clínicas.

Para a facilitadora da Arte Despertar Joelma de Andrade, essa transformação é possível à medida que o indivíduo consegue enxergar as suas principais potencialidades e compreender a importância de oferecer ao outro o que tem de melhor. “Muitas vezes, na correria do dia a dia, as pessoas esquecem da importância de nutrir um bom relacionamento, como se comunicar em diferentes situações e do porquê estão ali. O treinamento vem para despertar a reflexão e a percepção sobre o que você está fazendo e por que o outro precisa de você”, assinala a facilitadora.

Cuidar com histórias

Um hospital com vocação para humanizar. Foi sob essa perspectiva que o Instituto do Câncer de São Paulo (ICESP), inaugurado em 2008 sob a ótica da Política Nacional de Humanização (PNH), convidou a Arte Despertar para uma iniciativa pioneira. Levar para dentro do hospital o primeiro curso de contação de histórias voltado exclusivamente para profissionais da saúde.

“Primamos por instituições que tenham comprometimento. E a Arte Despertar foi pioneira ao elaborar essas ações voltadas ao colaborador”, lembra Maria Helena Sponton, coordenadora de Humanização do ICESP.

O objetivo do curso – que já percorreu hospitais como Incor, Sabará, Santa Casa de São Paulo, Hospital das Clínicas, IBCC, Hospital São Luiz Gonzaga, AACD – é promover o autoconhecimento do profissional da saúde e despertar habilidades até então adormecidas, que são capazes de transformar a sua atuação no ambiente hospitalar.

Há 30 anos na área da saúde, a chefe de enfermagem da Unidade de Internação de Cardiopatia Pediátrica e Cardiopatias Congênitas do Adulto do Incor Célia Yukiko Osato conta que a experiência de ter participado dessa formação em 2013 foi importante para integrar as equipes do hospital e melhorar a sua interação com as crianças internadas na instituição.

“Quem vivencia o cuidar em um hospital coleciona histórias reais e tenho muitas delas para contar. Os arte-educadores nos ajudam a expressar todas essas emoções, melhorar a comunicação e destravar a timidez em falar em público, dentre outros aspectos”, relata a enfermeira.

Para a diretora-presidente da Arte Despertar Regina Vidigal Guarita, a contação de histórias nessas instituições pode assumir um papel importante no processo de recuperação da saúde, à medida que trabalha com ferramentas capazes de acessar elementos que ajudam a ressignificar o momento pelo qual o paciente está passando.

“A contação de histórias inspira, faz sonhar, permite a cada um criar sua história, aciona o universo imaginário, trabalha os sentidos a partir da visão com imagens e da audição pelos instrumentos percussivos. Esses fatores são responsáveis pela mudança de estado de espírito daquele que escuta a história quando a toma para si e, neste momento, é acionado o lado saudável deste indivíduo, transformando seu momento”, explica Regina.

O cuidar do outro é justamente um dos principais elementos que pesam na decisão de quem se inscreve no curso, na avaliação da narradora de histórias Cristiana Ceschi. “Tem algo profundo que o curso proporciona que é um encorajamento para a pessoa lançar mão dos seus atributos a serviço do outro, de compartilhar sua arte com o outro. Ali, ela olha para a arte de contar histórias e faz dela uma expansão prazerosa do seu ser. É uma ferramenta que usa em todos os campos da sua vida”, destaca Cristiana.

A arte e a objetividade dos dados: uma parceria necessária

É nítido. Basta os arte-educadores chegarem a qualquer um dos sete hospitais atendidos na capital paulista para o ambiente se modificar por completo. E os sinais físicos vão muito além dos sorrisos, emoções e olhares compartilhados com os pacientes, acompanhantes e profissionais da saúde.

Contagiados pela música, corações que antes batiam lentamente tornam a trabalhar em ritmo mais acelerado e pacientes outrora arredios, ao ouvirem as histórias e os instrumentos musicais, passam a facilitar os procedimentos adotados pelas equipes médica e de enfermagem.

Estes são apenas alguns dos diversos efeitos positivos que as intervenções artísticas proporcionam nessa situação, e que são constantemente observados pela Arte Despertar nestes 20 anos de atuação nos hospitais.

Mas como provar que essas ações têm um impacto importante no processo de recuperação da saúde e de melhoria do relacionamento como um todo no ambiente hospitalar?

A primeira observação foi realizada na UTI de um hospital cardiológico, em 2014. Durante quase um ano e meio, foi possível perceber melhora no humor e no comportamento dos pacientes após participarem das intervenções artísticas. Os próprios pacientes relataram se sentirem melhores.

“Isso nos abriu um novo horizonte e passamos a olhar essas observações como um instrumento fundamental dentro do trabalho desenvolvido pela nossa equipe multidisciplinar”, revela Regina Vidigal Guarita, diretora-presidente da Arte Despertar.

Pesquisa na hemodiálise

Diante disso, a Arte Despertar decidiu desenvolver, no final de 2015, a sua primeira pesquisa, em parceria com o Grupo de Trabalho de Humanização do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Por um ano, os profissionais da Arte Despertar e do hospital acompanharam pacientes no setor de hemodiálise, até chegarem a uma metodologia capaz de mostrar como o uso de elementos sonoros produzidos por instrumentos musicais e a contação de histórias podem ajudar na transformação do ambiente.

Durante esse período, os arte-educadores se dedicaram a comparar graficamente as mudanças sonoras neste local antes e depois das intervenções musicais.

Para isso, foram utilizados dois instrumentos bem peculiares, que têm como principais características a emissão de sons harmônicos: Orin (indiano) e Sinopet, que consiste numa garrafa pet afinada com ar comprimido.

“Um mesmo alarme emitido pela máquina da hemodiálise pode ter até cinco significados diferentes, o que gera um clima de tensão e estresse no ambiente. Ao fazermos as intervenções sonoras, conseguimos aliviar estes efeitos e percebemos nos pacientes que estes alarmes passavam a não os incomodar mais”, afirma André Pereira Lindemberg, arte-educador da Arte Despertar.

Esta foi apenas uma das várias experiências relatadas no estudo. E a Arte Despertar sabe que diversas outras possibilidades podem ser exploradas para ratificar cada vez mais a importância da arte dentro das instituições de saúde.

“Quanto mais estudos e pesquisas produzirmos, maior será o espaço dedicado à arte e à cultura para este público, pois os resultados estarão chancelados pelos estudos de campo. E é isso que vamos buscar cada vez mais daqui em diante”, assegura Rosana Junqueira Morales, superintendente da Arte Despertar.

Arte nas comunidades: aqui começa a nossa história

Um desconforto: “Ver as pessoas se esquecerem do seu potencial, seja por qualquer motivo, me incomodava muito e precisava fazer algo a respeito”.

Uma certeza: “As crianças precisam crescer com mais qualidade. Explorar suas potencialidades, quando ainda estão em formação, tem o grande poder de transformar para sempre as suas vidas, com grandes ganhos para a sociedade”.

Um foco: “A arte por ser uma linguagem universal, é o melhor caminho para despertar pessoas para o seu talento, para a vida, para o que elas têm de melhor”.

Com estes três fortes ingredientes em combustão e uma boa dose de entusiasmo, Regina Vidigal Guarita fundava, em 02 de agosto de 1997, a Arte Despertar.

A Aldeia SOS Rio Bonito e, logo em seguida, a comunidade de Paraisópolis, foram os locais escolhidos pela Associação para impactar as vidas de crianças e adolescentes por meio de oficinas de teatro, música, literatura e artes visuais, cuidadosamente organizadas para provocar reflexões sobre si mesmos e o ambiente ao seu redor e explorar ao máximo as suas potencialidades.

“Com um olhar muito sensível para conseguir detectar as várias nuances que poderíamos trabalhar em cada um daqueles jovens, íamos tocando em pontos importantes relacionados às suas histórias de vida e seus vínculos familiares. Acabamos tendo um envolvimento profundo com toda a comunidade”, lembra a arte-educadora Elizabeth Belizário, que atuou em Paraisópolis e até hoje trabalha pela Arte Despertar nos hospitais.

A hoje pedagoga Ana Marta do Nascimento e a cenotécnica Katiana Aleixo, antigas moradoras de Paraisópolis, são algumas daquelas crianças que puderam dar novas perspectivas às suas vidas, ao se deixarem envolver pela arte e a cultura.

“Eu tinha 14 anos quando conheci a Arte Despertar e entrar neste universo da arte influenciou diretamente na minha decisão de me tornar educadora. Sou um exemplo vivo de que a educação transforma. E eu tento ser a educadora que eles me inspiraram”, afirma Ana.

“No ambiente em que vivíamos havia muita droga e era fácil se envolver em caminhos errados. Quando tive contato com a cultura, comecei a ver a vida de outra forma e seguir o que é certo. A Arte Despertar foi fundamental na minha formação pessoal, pois se posso dizer que sou uma pessoa de caráter, é graças à cultura”, acrescenta Katiana.

Os projetos nas comunidades deram tão certo que em 2011, a Arte Despertar recebeu a certificação da Fundação Banco do Brasil de Tecnologias Sociais.

Evolução

Ao mesmo tempo em que atuava nas comunidades, a Arte Despertar passou a levar intervenções artísticas para os hospitais, com pacientes de todas as idades. As ações, em ambientes tão distintos, se retroalimentavam e permitiam à Associação dar cada vez mais corpo às suas ações, conforme recebia os retornos instantâneos desses públicos.

Muitas mudanças se impuseram, naturalmente, neste caminho, à medida que as experimentações eram realizadas e aprimoradas. Em 2015, a Arte Despertar reforçou sua atuação na área da Saúde, usando a arte e a cultura como fio condutor de qualquer processo de transformação.

“Apesar dos resultados alcançados com a atuação em Educação, a Arte Despertar considerou estratégico direcionar suas ações para a Saúde, tendo em vista a sua longa experiência nesta área e também o fato de haver um menor número de projetos focados nas questões da humanização em instituições de saúde”, afirma Rosana Junqueira Morales, superintendente da Arte Despertar.

Narrativa que transforma

O que pode haver em comum entre um futuro advogado, uma psicóloga, uma jornalista e uma coach? Todos eles tiveram, de alguma forma, suas vidas pessoais e profissionais impactadas pelos cursos de contação de histórias, promovidos pela Arte Despertar em casas de cultura como Casa das Rosas, Museu da Pessoa, Biblioteca de São Paulo, Biblioteca Parque Villa-Lobos e Instituto Tomie Ohtake.

E a finalidade do curso é realmente essa: permitir que indivíduos com as mais variadas histórias de vida possam se encontrar, trocar experiências, conhecerem melhor a si mesmos e, assim, serem apresentados naturalmente a novas possibilidades e caminhos até então inimagináveis.

“A absoluta maioria dos participantes chega sem saber como contar uma história e, ao final da sexta e última aula, já estão apresentando verdadeiros saraus, com grande desenvoltura. Mas o mais interessante é o que ocorre durante este processo, em que desenvolvem um amplo autoconhecimento e adquirem novas habilidades para serem usadas pelo restante de suas vidas”, assinala Regina Vidigal Guarita, diretora-presidente da Arte Despertar.

Para a psicóloga Sônia Maria da Silva, que trabalha na Fundação Casa, as técnicas aprendidas durante o curso tornaram-se instrumentos importantes no desafiador dia a dia com os jovens da instituição. “A palavra pode aproximar muito as duas partes – eu, como psicóloga, e os meninos. É uma ferramenta de aproximação. As arte-educadoras despertaram muito o meu interesse em relação ao corpo e à voz e vou seguir em frente”, afirma ela, que participou do curso na Casa das Rosas em 2017.

Já para a social media Juliana Veloso, que participou do curso no Instituto Tomie Ohtake no ano passado, a experiência serviu para o seu autodescobrimento. “Foi uma forma de descobrir muito do que eu sou e me abrir para novas possibilidades. Cada um levou embora um pouco do outro e isso é muito interessante. Resgatamos dentro de nós algo muito importante”, relata.